A cidade do Porto é um exemplo de boa prática na implementação da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem Abrigo. A Médicos do Mundo, com projectos na Representação Norte, tem uma estrutura sólida de parceiros que partilha a mesma filosofia humanista de intervenção. Nesta entrevista com a Directora de Projectos Norte da Médicos do Mundo, Raquel Rebelo, damos a conhecer o trabalho realizado junto da população em situação de sem abrigo no Porto. 

 

Sara Moinhos

 

Médicos do Mundo (MdM): A par do projecto Porto Escondido, que dá respostas em contexto de rua, a representação norte actua no Projecto piloto Centro de Alojamento de Emergência de Pessoas em Situação de Sem Abrigo – Joaquim Urbano. Como é que surgiu o início da intervenção e em que âmbito é que a Médicos do Mundo intervém nessas instalações?

Raquel Rebelo (RR): A intervenção com população sem abrigo é transversal a todos os projectos que desenvolvemos no Porto: Porto Escondido, Unidade Habitacional de Santo António, Terceira (C)Idade, Banco de Medicamentos e mais recentemente Hospital Joaquim Urbano (HJU). Quando a Câmara Municipal do Porto abriu as portas do antigo HJU na vaga de frio de 2016, a equipa da Médicos do Mundo (MdM) dirigiu-se ao local oferecendo apoio na prestação de cuidados de saúde. Organizámos equipas rotativas de médicos voluntários e estivemos todos os dias no centro a prestar cuidados de saúde. Quando em Setembro de 2017 a Câmara Municipal avançou com um projecto piloto do Centro de Alojamento Temporário Joaquim Urbano, a coordenadora contactou-nos propondo continuidade da parceria.

MdM: A actuação da Médicos do Mundo junto da população em situação de sem abrigo passa pelos cuidados de saúde gratuitos mas também a educação para a saúde. Que iniciativas realizam e a sua importância junto desta população?
 
RR:Tendo em consideração o perfil das pessoas em situação de sem abrigo, para além da prestação de cuidados de saúde, outras actividades revestem-se de especial importância: disponibilização do teste rápido, educação para a saúde, apoio psicossocial, apoio medicamentoso, educação de competências, troca e distribuição de material para consumo de substâncias psicoactivas e distribuição de material preventivo. Entendemos que a saúde não será priorizada enquanto as necessidades básicas não estão asseguradas, daí que a intervenção psicossocial assuma um papel fundamental. Intervenções humanistas, holísticas, desenvolvidas nos contextos de vivência das PSSA são determinantes para o estabelecimento de uma relação terapêutica assente na confiança e empatia. Trata-se de co-construir um projecto de vida alternativo, garantir o acesso ao usufruto dos direitos básicos de cidadania como por exemplo, tirar o cartão de cidadão, facultar uma morada, orientar para o acesso aos direitos sociais, inscrever num centro de saúde, providenciar alojamento, alimentação, cuidados de higiene.

MdM: Em ambos os projectos, Porto Escondido e Centro de Alojamento de Emergência de Pessoas em Situação de Sem Abrigo – Joaquim Urbano, e tendo em conta a missão da organização, o foco prende-se com a prestação de cuidados gratuitos de saúde. Quais as principais fragilidades desta população no acesso a esses cuidados a entidades do Sistema Nacional de Saúde
 
RR: A primeira fragilidade advém da pirâmide de Maslow. Só após estarem satisfeitas as necessidades fisiológicas e de segurança é que conseguimos escalar e trabalhar a promoção da saúde e prevenção da doença. Daí que o foco seja a prestação de cuidados de saúde mas também o apoio psicossocial, aliás entendemos por Saúde o bem-estar biológico, psicológico e social. A ausência de documentação pessoal é um forte entrave ao acesso ao Sistema Nacional de Saúde; o processo de dessocialização provocado por longos percursos de rua afastam as pessoas em situação de sem abrigo das estruturas formais de apoio, sejam elas de saúde, sociais ou outras; a vulnerabilidade social e económica que vivenciam impede-os de cumprirem os regimes terapêuticos prescritos; a existência de co-morbilidades dificulta a adesão ao processo terapêutico.

MdM: Quais as principais patologias/ doenças / questões que levam estas pessoas a contactar com as equipas da Médicos do Mundo?
 
RR: Tradicionalmente são as equipas da Médicos do Mundo que contactam as pessoas em situação de sem abrigo e não o contrário, pelo menos numa primeira fase. Em relação às patologias mais frequentes temos as questões associadas à patologia mental, ainda que na maioria das vezes não diagnosticada, que aparecem associadas ou não à dependência de substâncias lícitas e/ou ilícitas. E temos também todas as doenças próprias da idade dos nossos PSSA, obviamente que agravadas pelos longos percursos de rua. Quero dizer que temos uma população sem abrigo envelhecida que sofre dos mesmos problemas de saúde da população geral, claro que agravados pelas dependências, pela fraca alimentação, pelas duras condições em que “sobrevivem”.
 

MdM: À semelhança do projecto Saúde a Girar, a equipa do projecto Porto Escondido vai ao terreno e actua numa lógica de proximidade. Qual é a importância desta resposta no seio da população em situação de sem abrigo da cidade do Porto? 
 
RR: As pessoas em situação de sem abrigo fazem parte dos chamados grupos vulneráveis que tendencialmente não recorre às estruturas formais de apoio. Só através de equipas de proximidade é possível estabelecer relações de confiança, que permitam a aceitação e adesão a um processo de acompanhamento que terá sempre como objectivo último a integração nas estruturas formais de apoio.

MdM: A Médicos do Mundo intervém em conjunto com uma rede de outras organizações. Qual é a importância desta estrutura ao nível da prestação dos cuidados de saúde a esta população?
 
RR: Na cidade do Porto, apenas duas equipas de rua garantem a prestação dos cuidados de saúde à população em situação de sem abrigo. Existem mais equipas que, para além de outras actividades, prestam cuidados de saúde mas o seu público-alvo está muito direccionado para os utilizadores de substâncias psicoactivas. 
Fazer a diferença nestes contextos só é possível através de uma intervenção concertada entre os vários actores/intervenientes. Só através de um trabalho de parceria conseguimos rentabilizar recursos humanos, físicos e materiais, só através da partilha e da discussão técnica conseguimos desenvolver intervenções estruturadas. Trata-se de “sair da caixa”, de problematizar, de questionar as respostas convencionais, de ouvir o que estas pessoas querem e tentar aproximar o mais possível ao que temos e podemos fazer.

MdM: A par dos projectos, que outras iniciativas estão a acontecer para defender os direitos das pessoas em situação de sem abrigo? 
 
RR: A defesa dos direitos das pessoas em situação de sem abrigo acontece no dia-a-dia da nossa intervenção, em cada contacto, em cada atendimento, em cada saída de terreno, em cada acompanhamento às estruturas formais da rede social de suporte, … Costumo dizer que “o que nos distingue não é tanto o que fazemos, mas antes, a forma como o fazemos”
 
Para além disso, a cidade do Porto foi pioneira e é um exemplo de boa prática na implementação das ENPISA. Temos uma estrutura sólida de parceiros que partilham a mesma filosofia humanista de intervenção, que lutam pela garantia do respeito e da dignidade da PSA (População Sem Abrigo) cujo auge culmina na existência de duas plataformas inéditas: uma que pretende dar voz às pessoas em situação de sem abrigo e outra que pretende a inclusão da PSA pela Arte. Temos também uma Associação de Voluntários, fundada por um cidadão que esteve em situação de sem abrigo.