A carta do Conselho Europeu para os Refugiados e Exilados (ECRE) surge na sequência da suspensão no financiamento dos EUA e nos cortes em vários países europeus à ajuda humanitária e cooperação para o desenvolvimento.
Leia abaixo a carta na íntegra.
No contexto dos cortes significativos no financiamento, a sociedade civil apela aos doadores institucionais e privados para intensificarem os seus esforços e trabalharem com a sociedade civil para garantir o funcionamento dos sistemas de asilo na Europa.
As implicações dos cortes no financiamento dos EUA à ajuda humanitária e cooperação para o desenvolvimento são graves e de longo alcance, incluindo em grandes crises de deslocamento de pessoas e para os principais países que acolhem refugiados. Estima-se que cada programa da USAID na Etiópia, RDCongo, Colômbia, África do Sul, Palestina, Bangladesh, Quénia, Afeganistão e Tanzânia tenha sido reduzido em mais de 200 milhões de dólares*.
O maior corte absoluto é na Ucrânia, com a retirada de 1,4 mil milhões de dólares**. Nos casos do Afeganistão, da Palestina e da Somália, estima-se que os cortes de financiamento dos EUA representem uma perda de mais de 1% do seu rendimento nacional bruto (RNB). Para agravar o impacto, reduções menos dramáticas, mas ainda assim significativas, nos orçamentos da ajuda humanitária foram realizados pelos grandes doadores europeus, incluindo Reino Unido, França, Países Baixos, Suécia e Suíça, e provavelmente também vão ocorrer na Alemanha.
As repercussões vão ser sentidas em todo o mundo: a ajuda humanitária que salva vidas não vai ser prestada a milhões de pessoas com necessidades, e decisões muito difíceis sobre a alocação de recursos vão ter de ser tomadas. As pessoas deslocadas à força dentro ou além das fronteiras do seu país vão sentir o impacto de forma iminente. Enquanto a maioria vai ficar presa a deslocamentos internos prolongados ou em países vizinhos, outros vão ser forçados a empreender viagens perigosas para aceder a ajuda humanitária, incluindo em direção à Europa.
O impacto dos cortes de financiamento será significativo também nos sistemas de asilo na Europa. Primeiro, os cortes no apoio às pessoas deslocadas em países como a Ucrânia ou a Turquia provavelmente vão levar ao aumento do fluxo de chegadas aos Estados-membros da UE à procura de proteção. Em segundo lugar, o setor de asilo europeu, que em muitos países depende em grande medida do financiamento de doadores institucionais ou privados, é diretamente afetado.
Muitas organizações da sociedade civil que apoiam requerentes de asilo e refugiados com diferentes serviços, assistência jurídica e apoio à inclusão foram atingidas pelo fim do financiamento dos EUA, seja através de cortes diretos ou porque doadores ou parceiros intermediários, como o ACNUR, encerraram ou reduziram o seu apoio. A diminuição significativa do orçamento do ACNUR vai afetar a maioria das organizações da sociedade civil que trabalham com asilo na Europa. Esta situação agrava o ambiente de financiamento já adverso para organizações que trabalham com direitos dos refugiados, muitas das quais enfrentam governos nacionais que recusam ou limitam severamente o financiamento a este setor.
No momento de redação desta carta, cortes significativos no financiamento foram relatados na Bélgica, Croácia, República Checa, Chipre, Estónia, Geórgia, Grécia, Kosovo, Malta, Macedónia do Norte, Noruega, Polónia, Portugal, Roménia, Sérvia, Eslovénia, Suécia e Turquia.
Neste contexto, e com as necessidades crescentes devido ao aumento de deslocamentos, a sociedade civil que trabalha com asilo e migração está sob enorme pressão financeira, enfrentando reduções significativas em termos de profissionais e de atividades. Tal situação vai deixar sem apoio muitas pessoas que procuram proteção na Europa, prejudicar o funcionamento dos sistemas de asilo e colocar em risco a implementação do Pacto em matéria de Migração e Asilo, no qual a sociedade civil desempenha um papel importante.
Face a esta nova realidade, é fundamental que todos os atores relevantes - a Comissão Europeia, os Estados-membros e os financiadores privados - reavaliem as suas prioridades e abordem as lacunas, para evitar uma crise de asilo, receção e inclusão na Europa.
Com este objetivo, as organizações signatárias apelam:
À Comissão Europeia para:
- Aproveitar a revisão intercalar do Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração (FAMI) e do Fundo Social Europeu+ (FSE+), para garantir que o financiamento canalizado através dos Estados-Membros apoie adequadamente as organizações da sociedade civil que trabalham com asilo e migração.
- Considerar a forma de financiar diretamente a sociedade civil, por exemplo, através de recursos da facilidade temática do FAMI, a fim de responder às necessidades emergentes de assistência jurídica, aconselhamento e outras atividades, as quais têm todas um elevado valor acrescentado para a UE, pois apoiam a implementação do Pacto.
- Rever, dada a alteração de contexto, se os Estados-Membros devem ser obrigados a despender uma determinada percentagem dos seus programas nacionais no apoio à sociedade civil, uma boa prática estabelecida no financiamento da UE ao deslocamento das populações da Ucrânia.
- Adaptar os programas nacionais ao abrigo do Instrumento de Assistência de Pré-Adesão (IPA), para responder às necessidades emergentes em relação ao asilo e à migração.
Aos Estados-Membros para:
- Garantir que os programas nacionais ao abrigo do Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração (FAMI) e do Instrumento de Gestão de Fronteiras e Vistos (IGFV) fornecem recursos adequados às organizações da sociedade civil; que a sociedade civil seja considerada elegível em todos os convites à apresentação de propostas relevantes; e que as atividades incluem aconselhamento jurídico e representação. Os convites devem ser emitidos prontamente.
- Consultar as ONG afetadas para entender quais são as necessidades e como podem ser atendidas a curto, médio e longo prazo.
Aos financiadores privados para:
- Reavaliar as necessidades de financiamento ao asilo na Europa, aumentar os recursos para este fim e priorizar os países onde a alocação nacional de fundos da UE ou o financiamento institucional chegam à sociedade civil.
- Agora, é necessária uma ação imediata. A médio prazo, a nova realidade de financiamento deve ser refletida nas propostas e nas negociações do próximo Quadro Financeiro Plurianual, a começar este ano.
*Cerca de 176 milhões de euros.
**Pouco mais de 1,2 milhões de euros.