Foi há um ano que o Programa de Consumo Vigiado (PCV) chegou ao terreno, em Lisboa. O contacto com os primeiros utentes, a adesão ao programa e o trabalho realizado diariamente são temas sobre os quais conversamos com Diana Gautier, assistente social e co-coordenadora, e Patrícia Nunes, enfermeira.

 

O Programa de Consumo Vigiado (PCV) assinala um ano de intervenção. Como foi a chegada ao terreno?

Diana Gautier (D.G.) - Resultou de muito trabalho, de muitas pessoas e instituições, que foi desenvolvido antes do PCV chegar ao terreno.

Em 2015, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) realizou um diagnóstico em que apresenta as respostas a implementar pelo Estado na área das dependências e, identificou, a necessidade dos programas de consumo vigiado em Lisboa, em complementaridade com as respostas já existentes, nomeadamente em zonas de maior concentração de consumo a céu aberto, tendo em vista a minimização dos riscos e danos.

A partir da recomendação da ARSLVT, foi celebrado, em Agosto de 2017, um protocolo de colaboração entre a Câmara Municipal de Lisboa (CML) e várias associações, entre as quais a Médicos do Mundo (MdM), para elaboração de três processos de diagnóstico e capacitação técnica. Os resultados dos diagnósticos e capacitações técnicas foram apresentados em sessão pública em Abril de 2018. Posteriormente a MdM e o Grupo de Ativistas em Tratamento (GAT) apresentaram uma proposta de implementação de uma Unidade Móvel de Consumo Vigiado para as freguesias de Arroios e Beato. Em Abril de 2019 esta resposta torna-se uma realidade no terreno.   

Os últimos meses de 2018 e os primeiros de 2019 foram dedicados à constituição e formação da equipa, identificação e articulação com os diferentes parceiros que actuam e/ou vivem nos territórios onde o PCV viria a intervir, como por exemplo, associação de moradores, juntas de freguesias, polícia, comerciantes, outras associações de base comunitária e, obviamente, com os utentes que frequentam as zonas em questão. Isto traduziu-se em inúmeras reuniões com o objectivo de explicar em que consiste o PCV, definição dos horários e locais de paragem da Unidade Móvel. Assim, quando chegou a altura de trazer o PCV para o terreno, a sua implementação foi feita de forma tranquila, esclarecida e, portanto, com boa aceitação por parte da comunidade e dos utentes a quem o PCV pretende chegar. 

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Esta é uma resposta inovadora em Portugal. Recorde-nos a reacção dos primeiros utentes.

D.G. - Esta é uma resposta há muito esperada pelos utentes. Por isso, de forma geral, foi com grande entusiasmo e aceitação que viram a concretização desta resposta. No entanto, é uma grande mudança na forma como os utentes estavam habituados a realizar o consumo, isto é, mesmo no espaço público, muitos tentavam esconder-se dos olhares das pessoas. E só o faziam no espaço público, porque não tinham outro local para o fazer – temos que ter presente que muitos estão em situação de sem-abrigo.

Uma frase muito comum que ouvíamos no início era “vou consumir à frente dos técnicos? Tenho vergonha”. Ou seja, o paradigma mudou e a mudança leva tempo a ser apreendida e é preciso criar uma relação de confiança entre técnico e utente. Este trabalho é feito diariamente e o saldo é muito positivo.

 

Patrícia Nunes (P.N.): Foi uma resposta de estranheza, mas ao mesmo tempo de expectativa e contentamento. Muitas dúvidas e curiosidade. Houve a necessidade de transmitir um ambiente seguro e explicar o funcionamento da unidade móvel e as suas mais-valias.     

    

PCV

 

Desde então, como tem evoluído a adesão ao programa e a relação com estas pessoas?

D.G. - A adesão por parte dos utentes e a aceitação pela comunidade tem sido muito positiva. Um indicador claro desta afirmação é o aumento do número de utentes que recorrem a nós e o pedido por uma maior presença do PCV por parte de associações de moradores de outras freguesias nos seus territórios. 

 

P.N. - Tem sido um processo lento, mas seguro, de fortes alicerces. Não se alteram comportamentos de anos de um dia para outro, bem como não é fácil passar a expô-los, mesmo que a profissionais de saúde ou educadores de pares, quando estes foram comportamentos sempre escondidos.

Claramente temos utentes mais assíduos do que outros, mas mesmo os que vêm pontualmente têm-nos como figura de ajuda. Contudo, pouco a pouco, o número de pessoas inscritas tem vindo a aumentar.

 

Quais têm sido os benefícios do PCV para comunidade e utentes?

D.G. - Acredito que a existência das salas de consumo, a par com as outras respostas que existem na área das Dependências, são uma questão de Direitos Humanos e de Dignidade da Pessoa, não só para a pessoa que usa substâncias psicoactivas ilícitas, mas também para todos que, de alguma forma, vivem com esta realidade e para toda a sociedade no geral. 

Desde o seu início que o PCV consegue chegar aos utentes que estão numa situação de grande fragilidade social e de saúde e, muitas vezes, afastados dos serviços que existem na comunidade. E aqui, neste ponto, o PCV pode servir de porta de entrada para estas pessoas no acesso aos seus direitos e, também, deveres enquanto cidadãos da comunidade. Para a comunidade, os benefícios também são bastante evidentes, nomeadamente, uma diminuição do consumo no espaço público e lixo associado, o contacto directo com a equipa, podendo assim sinalizar as situações de que tenham conhecimento e/ou mesmo encaminhar essas pessoas para a nossa resposta.

Outro benefício deste tipo de resposta é o contributo para a diminuição do estigma, que ainda existe sobre as pessoas que usam substâncias psicoactivas ilícitas. 

 

P.N. - Ao proporcionarmos condições de higiene e educarmos para um consumo mais seguro, estamos a reduzir as consequências para a saúde e, posteriormente, a obter ganhos para a saúde, não só de uma forma geral, mas também de uma forma particular. Outras vantagens são dar espaço para as pessoas falarem dos seus medos/dúvidas, contarem as suas histórias sem se sentirem julgados, falarem dos seus projectos de vida e, com isso, em conjunto com eles, tentarmos traçar uma estratégia.

 

Que actividades são realizadas diariamente para ajudar as pessoas?

D.G. - Os serviços no PCV vão além da supervisão do consumo injectado. No PCV temos cuidados de saúde primários, apoio social, realização de testes rápidos para as infecções pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH), Vírus da Hepatite C (VHC), Vírus da Hepatite B (VHB) e Sífilis e referenciação, encaminhamento e acompanhamento dos utentes aos serviços da comunidade, distribuição de material (como seringas, cachimbo, preservativos), educação para um consumo mais seguro e a ligação dos utentes aos serviços de saúde e/ou social.

PCV

 

P.N. – Durante todo o consumo está implícita toda uma parte educacional para que progressivamente as pessoas possam consumir de forma mais segura e de forma a minimizar os riscos. Também actuamos em caso de overdose ou reacção anafiláctica
e existem muitos atendimentos de saúde relacionados com consequências directas ou indirectas do consumo, como por exemplo os abcessos ou situações de trauma.

 

Qual o perfil dos utentes do PCV?

D.G. - De forma geral, podemos dizer que a grande maioria dos utentes que recorre ao PCV são homens, de nacionalidade portuguesa, com 45 anos e que se encontram em situação de sem abrigo, com uma média de anos de consumo de 15 anos. Têm precária rede de pertença e vários problemas de saúde, muitos associados ao consumo e outros já relativos ao avançar da idade. 

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Falamos de que tipo de dependências?

P.N. - Falamos sobretudo de dependências de heroína, cocaína/crack e benzodiazepinas.

 

Quais são as principais necessidades das pessoas que recorrem a esta resposta?

D.G. – É elevado o grau de complexidade das situações em que os utentes se encontram. A equipa do PCV é multidisciplinar – médica, enfermeira, assistente social, psicóloga e educadores de pares – e é a olhar o utente no seu todo, nas suas várias dimensões, que em conjunto, com o utente, definimos e redefinimos um plano de intervenção. E, ao longo do percurso, e sempre com o utente, vamos avaliando e fazendo os ajustes necessários ao plano inicial. De uma forma geral, as necessidades que a maioria dos utentes apresenta estão relacionadas com as necessidades básicas, nomeadamente habitação, alimentação, fonte de rendimento e/ou cuidados de saúde.

Outro ponto a ter em consideração na intervenção com os utentes que recorrem a nós, é a sua rede de pertença, os seus laços familiares e/ou de amigos. Uma parte considerável dos utentes encontra-se em situação de grande solidão, que acarreta mais uma dimensão de grande fragilidade nas suas vidas, a que a equipa tem atenção.      

P.N. - Muitas das pessoas que recorrem até nós vêm, numa situação de grande precariedade quer do ponto de vista social e de saúde. No que toca aos consumos, propriamente dito, muitas das pessoas que recorrem até nós são pessoas com veias danificadas ou maus acessos periféricos e que vêm pedir a nossa ajuda.

 

Quais as situações de saúde mais comuns e de que forma responde o PCV?

D.G. - Muitos problemas de saúde que são reportados à equipa estão relacionados com más práticas na realização do consumo/injecção. Em muitos casos, a equipa consegue dar resposta no imediato, mas sempre que necessário, fazemos a ligação com os serviços da comunidade, sejam os centros de saúde e/ou hospital. Não pretendemos substituir o Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas sim fazer a ponte entre o utente e esses serviços.


P.N. - Temos as consequências relacionadas com o consumo de substâncias injectadas, tais como flebites, abcessos e hematomas e, posteriormente, infecções como a hepatite C. Algumas das situações conseguimos dar resposta na unidade móvel, outras exigem encaminhamento hospitalar ou para consultas de especialidade.

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O PCV está presente em alguns locais de Lisboa. De que forma o seu alargamento poderia fazer a diferença na área das dependências?

D.G. - A eficácia das salas de consumo está muito bem documentada, tanto a nível europeu como fora da Europa. Esta resposta em complementaridade com outras é importante para a redução dos riscos associados à transmissão da infecção por VIH e hepatites virais, particularmente no que se refere à partilha de seringas e de outro material, redução dos riscos e danos associados a más práticas de injecção, aumento do uso de serviços de tratamento das dependências e redução do consumo e o material de consumo em espaços públicos. Assim, tendo em conta que o consumo a céu aberto existe em outros pontos na cidade de Lisboa e, numa visão macro, noutras cidades do país, o Programa de Consumo Vigiado, seja em Unidade Móvel ou sala fixa, fará toda a diferença na área das dependências e na vida das pessoas, sejam usuários de substâncias psicoactivas ilícitas ou não.   

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