Dependendo do tipo de embarcação e do local onde nos encontramos, uma tempestade pode atirar-nos contra as rochas e levar-nos a naufragar, ou ao invés, criar apenas alguns constrangimentos na viagem planeada.

Quem ousa sair para o mar, sabe que muito depressa pode passar de uma posição a outra.

A actual pandemia, apesar de muitas consequências negativas, veio despertar e revelar o melhor de cada um. Levou a que num espírito de abnegação, muitos tivessem deitado borda fora alguns mantimentos, para que pudesse existir lugar a bordo, para os que estavam em risco de naufragar.

No meu caso preparava-me para um estágio hospitalar no serviço de infecciologia no HSJ – Porto, curiosamente o epicentro da pandemia em Portugal por aqueles dias. Com aulas e estágio hospitalar suspenso, restou-me acantonar no quartel e aguardar pela chamada, depois de demonstrada disponibilidade. Admito que o fiz por uma questão de consciência social, mas com algum medo perante o pouco que se sabia sobre este novo vírus..

O convite chegou alguns dias depois. Não era a primeira vez que fazia voluntariado, não seria certamente a última em que iria servir o outro. No entanto o abdicar de um estágio num hospital e serviço de referência na área da infecciologia, por um projecto de voluntariado junto de pessoas sem abrigo, apesar de gostar e ser o possível no momento, deixava-me por mais que o quisesse negar, de alguma forma um pouco insatisfeito.

Os dias sucederam-se, os laços estreitaram-se, a aprendizagem começou. Os desafios eram diários: estar disponível, saber escutar, perceber que nos vemos ao espelho quando olhamos os outros. Ter a confirmação inequívoca de que somos todos feitos da mesma massa, e com humildade aceitar que qualquer pessoa, até nós, podemos cair numa situação de vulnerabilidade.

O contacto com situações que muitas vezes procuramos que sejam invisíveis, nem que para isso tenhamos que desviar o olhar na direcção oposta, obriga-nos a olhar para dentro a reflectir sobre o que nos é afinal essencial. Esta é assim uma viagem a dois tempos.

JF

Nestes pouco mais de dois meses, ficam na retina, relações sinceras de amizade, momentos hilariantes e também histórias de vida por vezes muito difíceis que mostram a resiliência de cada um destes homens e mulheres, mas em simultâneo a fragilidade da condição humana.

Invejo-lhes a coragem, a capacidade de sorrir- mesmo quando tudo corre mal, quando todas as portas se fecham, quando parece não deixar de ser noite. Reconheço-lhes a astúcia com que procuram no breu as estrelas, que lhe permitam iluminar o caminho a percorrer com a jangada, que entre pares constroem diariamente, tempestade após tempestade.

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