Mulher
Kristof Vadino

A violência de género, nomeadamente a praticada contra mulheres e raparigas, é uma das violações mais generalizadas dos direitos humanos em todo o mundo, com impactos graves na saúde, desenvolvimento e identidade da pessoa. Para assinalar o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as mulheres, a Médicos do Mundo partilha a história do homem que dedica a sua vida a ajudar vítimas de violência de género no Congo. 

Denis Mukwege é médico ginecologista e há décadas que se dedica a ajudar vítimas de abusos sexuais em regiões afectadas por conflitos. Um trabalho de uma vida que lhe valeu o Prémio Nobel da Paz em 2018.  

É membro do Conselho Consultivo da Campanha Internacional para Travar a Violação e Violência de Género nos Conflitos e, na República Democrática do Congo (RDC), o seu país de origem, fundou um movimento feminista masculino, o V-Men Congo. Desde 2015 que a delegação belga da Médicos do Mundo está no território e colabora com o médico Denis Mukwege, um homem que, apesar dos riscos, promete não se calar na defesa dos direitos das mulheres e, acima de tudo, pela justiça no seu país. 

Nasceu em 1955, em Bukavu, na parte oriental do então Congo Belga, e desde cedo começou a acompanhar o pai, um pastor evangélico, em visitas a doentes e a pessoas em situação de vulnerabilidade. Depois de ter estudado Medicina, Mukwege emigrou para França, onde fez a especialização em Ginecologia, antes de regressar ao seu país para trabalhar num hospital em Lemera. Nessa altura, ainda estava longe de imaginar o que a vida lhe reservaria… 
 

Médicos do Mundo (MdM) – Quando eclodiu a primeira guerra do Congo, em 1996, estava a trabalhar em Lemera, mas teve de fugir. Como fez para continuar o seu trabalho?

Denis Mukwege (DM) – Quando a guerra começou, 35 pacientes do meu hospital foram mortos nas suas camas. Fugi para Bukavu, a 100 quilómetros de Lemera, e comecei a atender doentes em tendas. Construí uma maternidade e uma sala de cirurgia improvisada mas, em 1998, foi tudo destruído. Tive de erguer, no ano seguinte, uma nova estrutura para poder atender os meus doentes, o hospital de Panzi. Dedicava-me a dar melhores condições de parto às mulheres e foi nesse ano que nos chegou a primeira vítima de violação.

Panzi
Kristof Vadino

MdM – Como foi o primeiro impacto?

DM – Depois de ter sido violentada, os agressores dispararam contra as suas pernas e órgãos genitais. Pensei que este acto bárbaro era algo isolado, uma atrocidade da guerra, mas o verdadeiro choque surgiu três meses depois…

MdM – Apercebeu-se que não era um caso isolado?
DM – Chegaram 45 mulheres para tratamento, todas com a mesma história: os combatentes entraram nas suas aldeias e cometeram violações e torturas. Algumas mulheres apresentavam queimaduras provocadas por abrasivos químicos que foram derramados nas suas genitálias. 

MdM – Começou a preocupar-se e a querer perceber o que se estava a passar…
DM – Sim. Comecei a perguntar-me o que estava a acontecer. Não eram só actos violentos de guerra. Faziam parte de uma estratégia! Em alguns casos relatados várias pessoas foram violadas publicamente ao mesmo tempo. A população feminina de aldeias inteiras sofreu abusos sexuais durante a noite. O objectivo destas violações colectivas era não só ferir as vítimas, mas toda a comunidade, já que todos eram forçados a assistir a tais actos. Como resultado, as pessoas tiveram de fugir das suas aldeias, abandonar as suas terras, os seus recursos, tudo. Trata-se de uma estratégia eficaz nesse sentido.

Médico
Kristof Vadino

MdM – Então, acabou por conseguir relacionar estes fenómenos com a guerra?
DM – Sem dúvida. O conflito no Congo não envolve grupos extremistas religiosos, nem é um conflito entre Estados. É uma guerra motivada por interesses económicos e que tem uma estratégia destinada a destruir as mulheres do país. Em 2011, assistimos a uma redução no número de violações e pensámos que tudo isto estivesse perto do fim. Mas, em 2012, a guerra recomeçou, e os casos de abuso sexual voltaram a aumentar. O fenómeno está totalmente ligado à situação de guerra. A violação devia ser encarada como uma arma de destruição maciça em situações de guerra. Estou determinado a combater estas atrocidades. Fizemo-lo [comunidade internacional] com as armas químicas e biológicas e podemos fazer o mesmo com os crimes sexuais.

MdM – O cuidado que tem com as vítimas vai muito para além de uma cirurgia. Como se processa o programa de auxílio às vítimas?
DM – Estabelecemos um padrão de atendimento às vítimas. Antes de as levar para a mesa de cirurgia fazemos um exame psicológico. Preciso de saber se estão em condições de resistir à operação. Após a cirurgia, ou apenas cuidados médicos, encaminhamos as pacientes para um programa que lhes oferece apoio socioeconómico. A maioria das vítimas chega aqui sem nada, nem sequer roupas! Temos de as alimentar e cuidar delas. Depois do fim do tratamento médico, se não forem capazes de se sustentar, acabam novamente por ficar vulneráveis. Ajudamos as mulheres a desenvolver novas habilidades e as meninas a voltar à escola. A quarta etapa do nosso programa de auxílio diz respeito a questões legais. Muitas vezes, elas conhecem a identidade dos agressores e temos advogados que ajudam a tentar levar os casos à justiça.

MdM – Talvez por todo este seu trabalho, chegou a ter de fugir do país…
DM – Fomos para a Suécia e, de seguida, para Bruxelas, depois de homens armados terem entrado no meu carro quando estava a chegar à garagem de casa. Retiraram-me do veículo e, como um dos meus seguranças me tentou resgatar, começaram a disparar e mataram-no… Eu agachei-me enquanto continuaram a disparar. Não sei como sobrevivi. Eles fugiram no meu carro sem levar nada e só depois descobri que as minhas duas filhas estavam em casa quando eles chegaram. Ficaram o tempo todo de armas apontadas às minhas filhas à espera que eu chegasse. Foi terrível. Não sei quem eram as pessoas, nem por que me atacaram.

MdM – Depois desta situação, o que o motivou a voltar ao Congo?
DM – O que me inspirou a retornar foi a determinação das mulheres congolesas no combate a estas atrocidades. Muitas tiveram coragem para protestar contra o ataque à minha família. Ainda juntaram dinheiro para pagar a minha passagem de volta ao Congo; e falamos de mulheres que não têm nada, vivem com menos de um dólar por dia. Organizaram-me uma recepção no aeroporto… Depois disso não podia dizer que não.

MdM – Como é a sua vida agora desde que regressou?
DM – A minha vida teve de mudar desde que voltei. Vivo no hospital e tomo uma série de precauções por questões de segurança. Perdi parte da minha liberdade. As mulheres têm-se revezado para vigiar o hospital. Grupos de 20 voluntárias fazem turnos, dia e noite, para tentar garantir a minha segurança. E elas não têm armas, nada! O entusiasmo delas dá-me confiança para continuar a trabalhar. [O hospital encontra-se sob protecção permanente da Missão das Nações Unidas para o Congo – MONUSCO]

MdM – O que é certo é que não são apenas as mulheres congolesas a reconhecer o seu trabalho. Já recebeu, em 2013, o prémio da Fundação Right Livelihood, conhecido como o Nobel Alternativo dos Direitos Humanos; em 2014, o prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, o prémio mais elevado dos Direitos Humanos do Parlamento Europeu; em 2015, o Prémio Gulbenkian e, claro, o Prémio Nobel da Paz, em 2018. Como se sentiu quando soube?
DM – Estava na sala de operações! De repente, as pessoas entraram e deram-me as notícias. Consigo ver os rostos de muitas mulheres que estão contentes por serem reconhecidas.

MdM – A guerra civil no seu país já provocou mais de seis milhões de mortos. No seu hospital, desde 1999, foram tratados mais de 50 mil sobreviventes de violência sexual. Chega a realizar mais de 10 cirurgias por dia. Que mensagem quer continuar a passar à comunidade internacional?
DM – Continuo a ter muito por dizer. Senti que precisava de sair do bloco operatório e informar o Mundo do que acontece aqui, encontrar autoridades para que façam tudo o que puderem para trazer de volta a paz. Vemos mais e mais mulheres a chegar do centro do país, onde antes não havia conflito. Isso é resultado de uma metástase da violência e dos acordos de paz que não se respeitam. Na verdade, é preciso que estes grupos sejam desarmados mentalmente, no plano psicológico, o que não está a ser feito. O corpo da mulher é transformado num verdadeiro campo de batalha. Em cada mulher violada vejo a minha mulher, em cada criança violada vejo os meus próprios filhos. Como posso calar a minha voz? Gostaria de não ter de falar mais destes crimes horrorosos de que são vítimas as minhas contemporâneas. Mas como posso ficar em silêncio quando sabemos que estes crimes contra a Humanidade são planeados por razões económicas? Não haverá paz e desenvolvimento social e económico sem respeito pelos Direitos Humanos.