Médicos do Mundo

Continuar junto dos utentes com comportamentos de risco para a sua saúde, como é o caso das pessoas que utilizam drogas, durante toda a pandemia da COVID-19, foi essencial para dar resposta a dúvidas e preocupações, diminuir o sentimento de desamparo e manter a motivação necessária.

Rute Mendes, psicóloga no projecto SER - Saúde em Equipa de Rua, em Barcelos, fala-nos do trabalho que tem sido realizado em termos de saúde mental, do impacto da pandemia da COVID-19 e de como a proximidade ajuda a amparar e a motivar quem se encontra em situação de vulnerabilidade. 

O projecto SER foi desenhado para apoiar pessoas vulneráveis, no concelho de Barcelos, que manifestam níveis de exclusão económica, social e familiar relevantes, e apresentam comportamentos de risco para a sua saúde. Apoia pessoas que utilizam drogas, trabalhadores sexuais, pessoas em situação de sem-abrigo e migrantes, tendo como principal objectivo a Redução de Riscos e Minimização de Danos (RRMD) associados ao consumo de substâncias psicoactivas e ao trabalho sexual. 

Como define o cenário em termos de saúde mental no que se refere à população apoiada pelo SER?
Rute Mendes (RM): O SER é um projecto de RRMD que apoia pessoas consumidoras de drogas, pessoas em situação de sem-abrigo, trabalhadores sexuais e migrantes. Assim sendo, a maioria dos utentes do projecto são consumidores de alguma substância, seja ela álcool, crack, heroína, canábis ou outras. A dependência de uma substância é por si só considerada um problema de saúde mental.

Além da adição, frequentemente existe um diagnóstico dual ou comorbilidade psiquiátrica, ou seja, os utentes não apresentam apenas uma perturbação do uso de substâncias mas outros problemas como ansiedade, depressão, psicose, etc., sendo que a perturbação psiquiátrica pode ser um factor de risco da adição ou vice-versa e a sua simultaneidade pode tornar-se cíclica (uma mantém a outra), espelhando a necessidade de não menosprezar o bem-estar psicológico dos utentes.

Face a este cenário, quais os principais desafios que se colocam? 
Rute Mendes (RM): O estigma associado, principalmente, aos consumos, a falta de empatia e a ausência de recursos/respostas especializadas são alguns dos motivos que levam a um afastamento destas pessoas dos serviços. O apoio psicológico prestado pela nossa equipa é limitado, pelo que privilegiamos a ligação aos serviços existentes na rede de suporte, funcionando como uma espécie de ponte com esses mesmos serviços. 

Em Barcelos, temos sobretudo duas possíveis respostas para questões de saúde mental, o acompanhamento dado pela equipa de tratamento (Projecto SORRIR) e o Serviço Nacional de Saúde (SNS). No entanto, e se focarmos o SNS, a consulta de psiquiatria não existe no Hospital de Barcelos, obrigando a uma deslocação dos utentes ao Hospital de Braga (viagem de 25 km ida + 25 km volta). Ora, a maioria dos utentes do nosso projecto não tem meios para pagar o transporte necessário e é a nossa equipa que providencia este acompanhamento sempre que possível. No entanto, a consulta de psiquiatria no SNS, assim como a consulta de psicologia não acontecem com a regularidade desejada para uma melhor e mais completa intervenção. 

Já a resposta dada pela equipa de tratamento funciona de forma mais próxima e regular, mas implica abertura dos utentes ao tratamento ou a programas de substituição opiácea (metadona e buprenorfina), não conseguindo chegar a vários utentes. 

 

“...é essencial ter presentes os princípios da RRMD ao trabalhar nesta área, respeitando sempre a dignidade e liberdade da pessoa em tomar as suas decisões.”

 

Existem desafios específicos quando falamos de pessoas que utilizam drogas, pessoas em situação de sem-abrigo, pessoas que fazem trabalho sexual e migrantes? Ou esses desafios são comuns?
Rute Mendes (RM): Em primeiro lugar, é essencial ter presentes os princípios da RRMD ao trabalhar nesta área, respeitando sempre a dignidade e liberdade da pessoa em tomar as suas decisões. 
Como seres humanos somos todos um conjunto de factores biopsicossociais, como tal devemos sempre encarar os utentes como tendo diferentes vivências, personalidades e necessidades. Muitas vezes o primeiro instinto será querer trabalhar a questão da adição com um utente, mas se pensarmos um pouco na pirâmide de necessidades de Maslow, que diz que na nossa base temos de ter asseguradas as necessidades básicas antes de qualquer outra coisa (como a alimentação e o sono), facilmente percebemos que será difícil alguém estar focado em trabalhar a sua adição sem ter um local próprio para viver, para tomar banho ou para comer, em geral, para se estabilizar. 

Depois, é necessário estarmos preparados para lidar com algumas especificidades que cada população-alvo nos traz. No caso de utentes consumidores de substâncias, temos de ser capazes de entender quando estão em momentos de maior ansiedade/stress, muitas vezes provocados pela abstinência, sem nunca adoptar uma postura julgadora. Da mesma forma, temos de respeitar a vontade da pessoa em consumir, não impondo a abstinência como um objectivo imediato. Aquilo que até achamos poder ser melhor para a pessoa não se pode impor à sua vontade própria. 

Outro desafio passa pelo estabelecimento de relações terapêuticas positivas com os utentes, estando condicionadas por diferentes factores. Temos utentes que nos visitam uma vez, utentes que nos procuraram pontualmente e utentes com quem estamos de forma regular. Com todos eles temos de ser capazes de transmitir segurança, empatia e criar uma atmosfera em que se sintam confortáveis. Isto nem sempre é fácil por vários motivos, sendo uma equipa de rua estamos constantemente a lidar com desafios que o próprio ambiente nos traz, barulho, condições meteorológicas, segurança física, etc., assim como a desconfiança destas populações que estão habituadas ao julgamento, estigma e repúdio de tantos outros intervenientes. Se, por um lado, temos quem receie que estejamos no terreno para informar a polícia ou outras equipas dos consumos de cada um, por outro, temos quem se sinta envergonhado em pedir ajuda devido a imensos anos interiorizando o preconceito que, por ser consumidor, estar em situação sem-abrigo ou fazer trabalho sexual, é menos que todos os outros. Uma frase que fomos ouvindo várias vezes durante os últimos dois anos e que é preocupante foi “Sou lixo”. 

Por último, é importante não desistir dos utentes. Pode ser frustrante um percurso com avanços e recuos, mas devemos ser capazes de trabalhar essa mesma frustração em prol dos utentes, continuando a estar presentes e ajudar naquilo que nos é possível dentro da permissão dada pela outra pessoa.

Qual tem sido a resposta do SER no que se refere à saúde mental? Que actividades são realizadas?
Rute Mendes (RM): O SER é um projecto de proximidade actualmente constituído por três elementos (enfermeira, psicóloga e assistente social), onde prestamos apoio através de uma unidade móvel. Nas saídas de terreno é realizada avaliação e prestado o apoio psicológico aos utentes que necessitem (e aceitem), existindo também momentos em que é sugerido o atendimento no centro fixo do projecto para a criação de outras condições e de uma melhor atmosfera terapêutica dadas as condicionantes existentes na rua. 

Em geral, os apoios psicológicos abordam questões como a motivação para o tratamento, abstinência e recaída, violência e relações interpessoais, mas também áreas como a auto-estima, autoconceito e o empoderamento dos utentes, visando sempre melhorar a sua qualidade de vida e a autonomia. Dadas as características do terreno e da população-alvo os apoios variam em tempo e periodicidade, havendo utentes que necessitam de um apoio mais pontual, muitas vezes ligado a uma necessidade criada por um factor stressor momentâneo (estabilização emocional), ou então por serem situações de transição, e.g., utentes que aceitam retomar o acompanhamento na equipa de tratamento ou serem encaminhados para o SNS. Por outro lado, há quem procure o apoio de forma regular e contínua, trabalhando-se questões relacionadas com o consumo de substâncias, mas essencialmente com o seu bem-estar.

Uma grande fatia do que fazemos consiste, sem dúvida, em trabalhar os encaminhamentos e acompanhamentos. No início do projecto, um grande número de utentes demonstrava recusa, receio ou vergonha da aproximação aos serviços, mas acima de tudo desconhecimento dos seus direitos e dos circuitos que deveriam percorrer. Este é um dos campos onde a equipa intervém diariamente, funcionando como ponte de ligação, através do encaminhamento e acompanhamento dos utentes às instituições, onde através da educação, informação e sensibilização, inclusive dos técnicos, trabalhamos a autonomização dos utentes, mas sobretudo o seu acesso aos cuidados de saúde, inclusive de saúde mental, e sociais de forma a colmatar as necessidades existentes.

Outra actividade da equipa, e que abrange a área da saúde mental, são as acções de sensibilização e educação para a saúde. Estas actividades proporcionam momentos de reflexão conjunta com os utentes e abertura à educação e informação sobre variados temas importantes. De igual forma, permitem a descoberta/avaliação de outras necessidades até então desconhecidas ou não possíveis de abordar e trabalhar. 

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“...a nossa equipa foi especialmente importante nesta pandemia por nunca ter saído do terreno. O facto de termos mantido a presença próxima dos utentes permitiu que pudessem esclarecer dúvidas e exprimir as suas preocupações, assim como diminuiu o sentimento de desamparo nos momentos de maior confinamento.”

 

Em que a medida a pandemia da COVID-19 agravou esses problemas e trouxe novos desafios? 
Rute Mendes (RM): Na primeira fase da pandemia, aquando do primeiro confinamento em Março de 2020, muitos serviços viram-se obrigados a reduzir bastante ou mesmo parar as suas respostas. Relativamente à saúde mental, os utentes que já eram acompanhados viram os seus atendimentos serem adiados por longos períodos de tempo e aqueles que necessitaram de encaminhamento viram a lista de espera aumentar cada vez mais. Este efeito ainda hoje se constata. Se antes as respostas existentes (de saúde mental) estavam atrasadas naquilo que seria o melhor grau de acompanhamento em termos temporais, hoje em dia estas respostas ainda se vêem com um fosso temporal maior entre atendimentos de utentes em acompanhamento e igualmente na lista de espera para novos utentes do que seria ideal. 

Se por um lado os serviços ficaram mais lentos, a COVID-19 trouxe várias fragilidades a nível de saúde psicológica para a população de forma geral, nomeadamente a nível de ansiedade e depressão. Sinto que a nossa equipa foi especialmente importante nesta pandemia por nunca ter saído do terreno. O facto de termos mantido a presença próxima dos utentes permitiu que pudessem esclarecer dúvidas e exprimir as suas preocupações, assim como diminuiu o sentimento de desamparo nos momentos de maior confinamento.

Sobre esta intervenção, há alguma história que queira partilhar?
Rute Mendes (RM): Posso dar o exemplo de quatro utentes que foram trabalhados com dois objectivos diferentes. 
Temos o caso de dois utentes com psicopatologia de base, ou seja, que apresentam um problema psicológico independente da questão dos consumos, em que o objectivo mais importante era conseguir a sua estabilização psicológica e mantê-la. Nestes casos foi necessário trabalhar a sua adesão ao regime terapêutico, o que num dos utentes implicou mesmo o acompanhamento ao Porto para consulta (mais de 120km de ida e volta). Esta adesão foi possível pela proximidade da equipa, pela preparação semanal da medicação e toma assistida, assim como o trabalho na motivação de cada utente. 

Os outros dois utentes foram situações de integração em desabituação alcoólica, seguida de comunidade terapêutica. Nestes utentes, foi importante a articulação da nossa equipa com a equipa de tratamento. Como única equipa de rua e de RRMD em Barcelos, conseguimos ter uma relação mais próxima de uma grande parte dos utentes. Sabemos que é importante o utente estar motivado para o tratamento ter maiores possibilidades de sucesso, por outro lado a motivação pode ser inconstante com o passar do tempo. Ora, devido à pandemia - e no caso de um dos utentes existiam outros problemas de saúde -, o tempo de espera para internamento foi longo, o que tornou difícil manter os utentes motivados, mas no final ambos integraram as respectivas comunidades terapêuticas e lá se mantêm até hoje. 
 

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