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Segunda parte do artigo sobre Direitos Humanos, cultura e tradição, da autoria de Ernesto Carneiro, membro da Direção, e Fernando Vasco, presidente da Assembleia Geral da Médicos do Mundo. Aceda à primeira parte aqui.

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Por Ernesto Carneiro, membro da Direção, e
Fernando Vasco, presidente da Assembleia Geral da Médicos do Mundo

 

Cultura, tradição e Direitos Humanos

“A tradição é a transmissão de costumes, comportamentos, memórias, rumores, crenças, lendas, para pessoas de uma comunidade, sendo que os elementos transmitidos passam a fazer parte da cultura. Hábito ratificado pela prática histórica, passado que indica respeito, ato contínuo validado por uma transmissão cultural”1

Cultura (do latim cultura) é um conceito de várias aceções, sendo a mais corrente, especialmente na antropologia, a definição genérica formulada por Edward B. Tylor, segundo a qual cultura é "todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade". A definição de Tylor tem sido problematizada e reformulada constantemente, tornando a palavra "cultura" um conceito extremamente complexo e impossível de ser fixado de modo único2. Hannah Arendt, define cultura, como a representação da expressão do ser humano, dos seus comportamentos e vivências, contemplando/integrando aquilo que é comum, aprendido ou transmitido a um conjunto de indivíduos organizados socialmente.

Assim, a cultura é um aspeto determinante da existência humana e um valor intrínseco à sua existência. Não se pode conceber a natureza humana, sem a sua natureza cultural, independentemente da sua variedade e multiplicidade.

Tomando como referência Hannah Arendt, importa destacar os aspetos relacionados com a pluralidade da condição humana e que podem reforçar os Direitos Humanos (DH) inscritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), bem como as contradições entre os ideais dos DH e a diversidade cultural.  Estas últimas são um campo fértil de discussão, onde, por um lado, se coloca a defesa inalienável dos DH e, por outro, o respeito pela diversidade das tradições e culturas de um povo (Art.º 22 DUDH). 

Outras formas de olhar o mundo 

A DUDH tem nas suas raízes uma visão dos DH e da dignidade humana que é partilhada pelas sociedades europeias e ocidentais. 

Contudo, nomeadamente as sociedades africanas e asiáticas têm vindo a afirmar-se no contexto mundial. Estas sociedades têm uma história e uma identidade cultural, que legitimamente defendem, assentes em valores substancialmente diferentes das sociedades ocidentais. Falamos de religiões, de ordenamentos jurídicos e de organização da sociedade muito diferentes daquelas que nos são comuns, São exemplos a tradição chinesa - Taoismo e Confucionismo, o Budismo, Judaísmo, Induísmo, Islamismo, Filosofia Ubuntu e mesmo o Cristianismo, mas todas elas preocupadas com a dignidade do Homem.

Já em 1948 era possível prever que o conteúdo da DUDH, levantaria questões a um conjunto de Estados. Dos 58 Estados que votaram a DUDH nenhum votou contra, dois, Iémen e Honduras, não estiveram presentes, mas oito abstiveram-se. Se excluirmos a abstenção da África do Sul onde então vigorava o apartheid, as outras abstenções são relevantes. Assim, as da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, da Ucrânia, da Bielorrússia, da Checoslováquia, da Jugoslávia e da Polónia, decorrem da resistência do universo comunista à matriz predominante liberal do texto, onde não relevam os designados direitos sociais - ou direitos socialistas.  O voto da Arábia Saudita, é especialmente relevante pois, implicitamente, traduz um afastamento estrutural, inultrapassável que é extensível à globalidade dos Estados muçulmanos.   

Quando a cultura e a DUDH convergem 

Sendo a DUDH uma referência no que toca à defesa da dignidade humana, e que nela se defende a identidade cultural enquanto direito humano, importa mostrar que outras formas de olhar o mundo que não as nossas, ocidentais e de inspiração cristã, também contribuem para a preservação dessa mesma dignidade, sendo reconhecidas pelos governos e sistemas jurídicos dos países onde existem. São exemplo disso, a filosofia Ubuntu, a Carta Mandinga e Tribunais Gacaca (África) e os  Nari Adalat (Índia).

Estes exemplos da eficácia e legitimidade social de mecanismos não estatais, porque emergem das próprias comunidades culturais, tendem a ser mais sustentáveis e eficazes a longo prazo do que mudanças impostas por atores externos. Esses sistemas, que servem para proteger as comunidades, precisam ser considerados. 

Quando a cultura e a DUDH divergem

É nestas situações que nos devemos focar, por serem muito relevantes e por colocarem em causa a ideia de universalidade dos DH. A discussão que tem vindo a ser feita em torno do tema Universalidade versus cultura/tradição não é nova e exige seriedade e ponderação.  

Pelo peso que tem no mundo, não podemos deixar de olhar para o Islão como o elemento que mais fortemente obriga a considerar a não universalidade da DUDH. Na verdade, a natureza da DUDH, genericamente liberal e laica, choca com o pensamento islâmico, nomeadamente no que concerne à liberdade religiosa (art. 18º), à liberdade nupcial e à igualdade conjugal (art. 16º) e igualdade de género (art. 1º e 2º).3

A afirmação do Islão4

À luz da DUDH, os DH são frequentemente violados no mundo islâmico, apesar de, na teoria, os sistemas judiciários da maioria dos Estados islâmicos se aproximarem dos modelos europeus.

Consideremos a Sharia enquanto sistema jurídico do Islão. Ela é um conjunto de normas derivado de orientações do Corão, falas e condutas do profeta Maomé e jurisprudência das fatwas - pronunciamentos legais de estudiosos do Islão. Numa tradução literal, Sharia significa "o caminho claro para a água". A Sharia, por exemplo, restringe a liberdade religiosa devido à desigualdade existente entre muçulmanos e não muçulmanos, e a conversão de muçulmanos é frequentemente punida com sanções penais. A liberdade de opinião só é válida, desde que a opinião expressa não contrarie os princípios da Sharia nem seja utilizada para enfraquecer a fé de terceiros. 

Há décadas que a posição da mulher e a legalidade dos castigos físicos brutais previstos na Sharia têm vindo a ser debatidas. Mesmo em Estados secularizados é admitida a validade do direito religioso a nível local, nomeadamente no domínio das leis do divórcio ou das sucessões, o que, na perspetiva ocidental, viola mais uma vez os direitos fundamentais das mulheres, já que na Sharia não lhes é atribuído o mesmo valor que aos homens.

O antagonismo entre a DUDH e a jurisprudência islâmica tem levado a que as Convenções das Nações Unidas acabem muitas vezes por não surtir efeito. A Assembleia Geral das Nações Unidas de Dezembro de 2007 cedeu aos apelos de proteção contra as críticas religiosas por parte dos países islâmicos e aprovou uma resolução contra a difamação das religiões. Consequentemente, qualquer pessoa que considere que a sua fé foi ultrajada pode recorrer ao sistema judicial para calar quem ouse criticar a religião. Com a assinatura da Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos no Islão (DCDHI), como complementar à (DUDH), os membros da Organização da Conferência Islâmica (OCI) romperam, de facto, com os direitos humanos.5

Inspirado pelo êxito da Revolução Iraniana (1979), o islamismo conhece uma renovada ambição. Na verdade, um grande conjunto de estados, independentemente do seu regime ser mais ou menos confessional, têm vindo a firmar o Islão no mundo, tendo como traço comum e orientador do sistema judicial a Sharia. 

É nesse quadro político que emerge a Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos (1981), proclamada pelo Conselho Islâmico, em Paris, como forma de celebração do início do XV século da Era Islâmica. Esta Declaração pretenderia, alegadamente, sinalizar uma aceitação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, mediante as necessárias adaptações.  Porém, de facto, constitui a primeira rejeição da DUDH e, simultaneamente, a primeira objeção, sistémica do seu pretendido universalismo, ao ter a Sharia como a Lei.    

Em 1990 surge a Declaração dos Direitos do Homem no Islão - conhecida como Declaração do Cairo - adotada pelos Estados que integram a Organização da Conferência Islâmica, onde já é muito claro o afastamento dos valores do Ocidente e, portanto, dos valores da DUDH. 

Em 2004 é aprovada a Carta Árabe dos Direitos Humanos (vigora desde 2008). A sua génese começa em 1960 e só termina em 2004.  A Carta afirma-se como o primeiro tratado internacional multilateral de matriz islâmica sobre o tema DH.6,7

A Carta, pela sua natureza, confronta mais diretamente os Pactos Internacionais sobre os Direitos Civis e Políticos e sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, e menos com a DUDH. Não podemos ignorar o longo processo que levou à sua elaboração, enquanto forma diferente e antagónica de ver o mundo e os DH, quando comparada com a nossa. 

O que nos deve preocupar 

Face aos diferentes entendimentos sobre os DH, há que estar particularmente atento aos contextos culturais que contêm em si elementos discriminatórios, os quais, ao serem considerados, são um verdadeiro travão ao reconhecimento de uma série de direitos. 

São muito sensíveis as áreas dos direitos das mulheres e da comunidade LGBT, que são particularmente limitados em sociedades africanas e em sociedades em que em que o islamismo e o catolicismo são muito preponderantes.  São exemplo destes conflitos a discriminação/violência de género, a mutilação genital feminina (MGF), o casamento infantil, a negação ou interdição do acesso à educação das raparigas, a obrigação de usar determinada indumentária (véu islâmico, burca), etc.  

Julgamos importante dar o exemplo da prática nefasta que é a MGF. Esta prática, predominante em sociedades que professam a religião islâmica, é sustentada em parte como uma imposição religiosa quando, na verdade, não existe no Corão qualquer referência a esta prática.

Sabemos que quer a cultura, quer a tradição são instrumentos poderosos na vida dos povos, influenciando, por exemplo, a administração da Justiça. A questão dos crimes culturalmente motivados tem merecido a atenção dos investigadores.8,9,10 São exemplo disso os trabalhos realizados na Guiné-Bissau, sobre o conflito entre o ordenamento jurídico vigente (de matriz portuguesa) e a realidade cultural que promove a MGF e o infanticídio ritual, que também ocorre no Brasil.11,12,13,14 

Promover uma alteração substantiva neste tipo de contextos sociais, necessita de uma intervenção em dois planos, interno e externo, em que o direito requer uma aplicação criteriosa e a educação para a mudança será fundamental num longo prazo. Impor uma visão exterior, sempre encarada como um ataque ao modo de vida dos indivíduos, levará a uma cristalização de posições e a reações mais ou menos violentas.

Na verdade, a mudança deve dar-se por dentro e deve ser liderada no seio da própria comunidade. 

Consideramos fundamental que a discussão se faça em torno da “antinomia entre ideal dos DH Universais e a efetivação do direito à identidade cultural”, como forma de encontrarmos uma plataforma em que a maioria dos países do mundo se reveja, essa sim, verdadeiramente universal. Nos últimos 70 anos, a diversidade cultural, a influência de atores não estatais e a pluralidade jurídica tem recebido cada vez mais atenção. Essa evolução deve ser levada a sério, para que a filosofia da DUDH possa ser transmitida às comunidades locais e ser eficaz em seus contextos e culturas.

Os atuais debates sobre a ausência virtual de ideias não ocidentais nos padrões de direitos humanos – que indicam o desconforto sentido por uma parte da população mundial – ilustra que a discussão, iniciada pela UNESCO em 1947, foi prematuramente descartada, e que merece ser reaberta.15,16

A discussão que tem vindo a ser feita em torno do tema universalidade versus cultura/ tradição exige seriedade e ponderação. 

Há que estar particularmente atento aos contextos culturais que contêm em si elementos discriminatórios, os quais, ao serem considerados, são um verdadeiro travão ao reconhecimento de uma série de direitos. A Human Rights Watch tem documentado, através de exemplos muito variados que incluem sociedades ocidentais, para além de africanas e orientais, “como, elementos discriminatórios presentes em tradições e costumes tem impedido ao invés de promover, os direitos sociais, políticos, civis, culturais e económicos das pessoas”.17 

Trata-se de compreender as razões profundas de determinadas práticas e não permitir que alguns aspetos da identidade cultural se sobreponham aos direitos e à dignidade dos cidadãos. 

Devemos olhar com esperança e apoiar os movimentos desenvolvidos pelas mulheres nomeadamente em diversos países islâmicos, na defesa dos seus direitos. Este caminho tem vindo a ser trilhado e é irreversível.  

A propósito de como olhamos para o “outro”, vale a pena lembrar a Declaração de Princípios sobre Tolerância, que foi adotada em 16 de novembro de 1995 pelos Estados-membros da Unesco. Nela se afirma que tolerância não é indulgência nem indiferença e sugere “o respeito e a apreciação da rica variedade das culturas do mundo e formas de expressão”.

Citando Kofi Annam, “A tolerância e o respeito pela dignidade do indivíduo não são estranhos a nenhum povo e são naturais a todas as nações”. São também de relevar uma sua afirmação em que considera que, nesta matéria de cultura e DH, o problema não está nos povos em si, mas nos seus líderes. E voltamos a citá-lo "Ninguém nasce um bom cidadão ou um bom democrata ou um bom líder; Leva tempo e educação."

Face ao que dissemos, consideramos, com Barbosa Rodrigues, que a DUDH, nunca foi, não é, e jamais será́, pelas razões enunciadas, Direito Internacional Geral dos Direitos Humanos. Todavia, em sede de Direitos Humanos estruturais, de direitos de liberdade, civis e políticos, o universalismo recorta-se como a única construção admissível, à luz da dignidade da pessoa humana e da própria noção de Homem.18 

Segunda parte do artigo, composto por duas partes.
A primeira parte pode ser lida aqui

 

Notas:

1https://www.dicionarioinformal.com.br/diferenca-entre/tradi%C3%A7%C3%A3o/cultura/
2https://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura 
3 Rodrigues, Luís Barbosa; Universalismo versus relativismo: a declaração universal dos direitos do homem e o islão,1962- http://hdl.handle.net/11067/4643
4 Rodrigues, Luís Barbosa; Universalismo versus relativismo: a declaração universal dos direitos do homem e o islão,1962- http://hdl.handle.net/11067/4643
5https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/E-7-2011-001463_PT.html
6https://www.passeidireto.com/arquivo/4036954/a-carta-arabe-de-direitos-humanos
7http://hrlibrary.umn.edu/instree/cairodeclaration.html 
8 Dias, A.S.; O Direito Penal Ante a Estranha Multiplicidade Das Sociedades Contemporânea. Ed. Almedina. 2019
9 Godoy, L. N.; Os Delitos culturalmente motivados e a Justiça Restaurativa.  Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra. Julho de 2017.  
10 Carvalho, A. A. T. C.; Direito à diferença étnico-cultural, liberdade de consciência e direito penal. Universidade Católica Portuguesa.
11 Dias, A. S.; Faz sentido punir o ritual do fanado ? Reflexões sobre a punibilidade da excisão clitoridiana. https://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Dias-Augusto-Silva-Faz-sentido-punir-o-ritual-do-fanado-Reflexoes-sobre-a-punibilidade-da-excisao-clitoridiana.pdf
12 PEREIRA, A. P. F. J.; Os Crimes Culturalmente Condicionados e a Sua Punibilidade: o Crime de Mutilação Genital Feminina. 2016. Universidade de Lisboa. Faculdade de Direito.
13 Dias, A.S.; Problemas do Direito Penal numa sociedade multicultural: o chamado infanticídio ritual na Guiné-Bissau. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6 (1996), p.209 e ss
14 O Caso Aisanan Kamayurá: a problemática do infanticídio cultural nas comunidades indígenas brasileiras e o binômio multiculturalismo/criminalização1 ∼ Prof. Msc. Admaldo Cesário dos Santos∽ https://ficp.es/wp-content/uploads/2017/03/Dos-Santos.-Comunicaci%C3%B3n.pdf 
15https://pt.unesco.org/courier/2018-4/direitos-humanos-e-perspectivas-culturais
16https://en.unesco.org/courier/august-1948/distinguished-world-thinkers-study- bases-human-rights
17https://www.hrw.org/pt/world-report/2013/country-chapters/259929
18 Rodrigues, Luís Barbosa, 1962- Universalismo versus relativismo: a declaração universal dos direitos do homem e o islão - http://hdl.handle.net/11067/4643