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A propósito do Dia do Serviço Nacional de Saúde, que se assinalou ontem, 15 de setembro, conversámos com Cláudia Paixão, coordenadora da Equipa Técnica de Rua em Saúde (ETRS) e de projetos internacionais da Médicos do Mundo, sobre os desafios que fragilizam o sistema e o impacto direto nas populações mais vulneráveis.

15 de setembro de 2025

 

Licenciada em Serviço Social/Mestre em Saúde e Desenvolvimento Global (Antropologia médica e saúde pública), Cláudia Paixão partilha uma visão crítica e comprometida com a defesa da saúde como direito humano, refletindo sobre o papel da sociedade civil e das organizações na construção de um sistema mais justo e inclusivo.

Nos últimos tempos, temos assistido a uma crescente preocupação pública com o estado do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Como carateriza o momento atual do SNS em Portugal, especialmente à luz dos desafios que se têm acumulado?
Cláudia Paixão (CP): O SNS atravessa uma pressão sistémica crescente: a despesa pública em saúde aumenta de forma contínua, enquanto os indicadores de produtividade e eficiência revelam estagnação. A sobrecarga sobre os profissionais traduz-se em exaustão, elevada rotatividade e perda de capacidade instalada. 

Num contexto de desigualdades socioeconómicas persistentes, a saúde reflete hoje as fragilidades estruturais do país. O princípio da universalidade, que deveria sustentar o sistema, encontra-se ameaçado por um modelo de gestão centrado na contenção orçamental e na lógica de serviço, em detrimento da saúde como direito pleno e inalienável.

Sabemos que os desafios são muitos, mas alguns têm-se tornado particularmente críticos. Quais considera serem os principais problemas que se colocam hoje ao SNS — tanto na sua estrutura como na resposta às necessidades da população?
CP: Os problemas que hoje fragilizam o SNS são estruturais e interdependentes. A escassez e o desgaste dos profissionais comprometem a continuidade dos cuidados e geram ciclos de rotatividade que fragilizam as equipas. O predomínio de um modelo biomédico, centrado quase exclusivamente na dimensão biológica da doença, continua a negligenciar as determinantes sociais, culturais e ambientais da saúde, perpetuando uma visão limitada e descontextualizada. 

As políticas adotadas, marcadas pela ausência de planeamento de longo prazo, têm privilegiado respostas conjunturais e orçamentais, em detrimento de estratégias sustentáveis de equidade e inclusão. As desigualdades de acesso tornam-se cada vez mais evidentes: são os mais vulneráveis (pessoas em situação de pobreza, sem-abrigo, migrantes) que sentem de forma mais dura a exclusão. Para muitos, a saúde é vivida como mercadoria inacessível, um bem que não conseguem comprar, quando deveria ser garantida como direito humano fundamental e incondicional.

 

"Com maternidades a encerrar rotativamente e grávidas sem garantia de parto seguro próximo de casa, fica exposta a incapacidade do sistema em assegurar direitos básicos num momento tão decisivo da vida."

 

Para além dos números e dos indicadores, há pessoas — profissionais e utentes — que vivem diariamente os impactos desta realidade. Que consequências têm estes constrangimentos para quem trabalha no SNS? E para quem depende dele, sobretudo as pessoas em situação de maior vulnerabilidade?
CP: Para os profissionais, os impactos são claros: burnout, elevada rotatividade e desvalorização. Para os utentes, o sistema traduz-se em exclusão, longas filas de espera e cuidados desumanizados. O modelo atual intensifica desigualdades, reduz as pessoas a corpos úteis ou descartáveis, ignorando a sua dignidade e singularidade, e abandona quem mais precisa de cuidado. A situação na obstetrícia é exemplo disso: com maternidades a encerrar rotativamente e grávidas sem garantia de parto seguro próximo de casa, fica exposta a incapacidade do sistema em assegurar direitos básicos num momento tão decisivo da vida.

 

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A Médicos do Mundo tem uma intervenção direta junto de populações que enfrentam barreiras no acesso à saúde. Que tipo de falhas no sistema têm sido mais evidentes no terreno? 
CP: As falhas mais evidentes no sistema de saúde emergem no contacto direto com populações em situação de vulnerabilidade. Um dos constrangimentos mais críticos refere-se à ausência de número de utente, que impede cidadãos estrangeiros de aceder a exames complementares de diagnóstico, consultas médicas e serviços de triagem telefónica como a Linha Saúde 24. Este bloqueio administrativo traduz-se numa barreira estrutural ao direito à saúde, contrariando os princípios de equidade e universalidade que deveriam sustentar o SNS.

Paralelamente, verifica-se uma falha generalizada no acesso a cuidados de saúde primários, marcada por listas de espera prolongadas, dificuldade de referenciação e insuficiente resposta dos centros de saúde para atender situações agudas ou de acompanhamento continuado. O acesso a consultas especializadas é igualmente limitado, com tempos de espera que comprometem a eficácia terapêutica e a gestão precoce de patologias.

Outro ponto crítico é o acesso a medicamentos, condicionado tanto por barreiras económicas, como pela descontinuidade na prescrição, decorrente da falta de integração no sistema. 

A nossa ação procura complementar o SNS, garantindo que ninguém fica para trás. De que forma a Médicos do Mundo tem procurado responder a estas falhas e assegurar o direito à saúde?
CP: Respondemos com equipas multidisciplinares de proximidade, que cuidam, acompanham e criam vínculo. Não nos limitamos ao biologismo: sabemos que a saúde nasce também do social, do cultural e do comunitário. O nosso trabalho afirma uma certeza: lutamos contra todas as doenças, até mesmo a injustiça.

 

"A aposta na prevenção é essencial para a sustentabilidade do SNS."

 

Perante o atual cenário, é urgente pensar em soluções que não sejam apenas paliativas. Que medidas considera fundamentais para reforçar o SNS e garantir cuidados de saúde acessíveis e de qualidade para todas as pessoas?
CP: Reforço dos cuidados primários, redução das desigualdades no acesso e investimento em programas comunitários e de saúde mental. A aposta na prevenção é essencial para a sustentabilidade do SNS: diagnósticos precoces reduzem tratamentos complexos, melhoram a qualidade de vida, libertam recursos e fortalecem a capacidade de resposta do sistema.

Para além das medidas estruturais, é fundamental analisar os desafios éticos da prática médica: atualmente muitos médicos reduzem-se a atos técnicos, tornando-se tarefeiros em vez de cuidadores integrais. Esta rutura com o Juramento de Hipócrates fragiliza doentes, profissionais e o sistema. Mais do que nunca, é urgente recentrar a medicina na relação humana, na escuta ativa e na integridade ética.

A transformação do sistema de saúde não depende apenas de decisões políticas. Como pode a sociedade civil — organizações, cidadãos, profissionais — contribuir para um SNS mais justo e inclusivo?
CP: A sociedade civil tem poder de denúncia e de proposta. Organizações, cidadãos e profissionais devem recusar a lógica de mercado e exigir equidade. Defender o SNS é defender a saúde como bem público, construído coletivamente e acessível a todas as pessoas, e não como subsistema económico.

Para terminar, gostaríamos de deixar uma mensagem clara e mobilizadora. Que reflexão ou apelo gostaria de partilhar sobre o futuro do SNS e o papel da Médicos do Mundo?
CP: O futuro passa por afirmar o SNS como um direito humano, e não como mera gestão económica de serviços. O papel da MdM é claro: denunciar desigualdades, gerar consciência e promover mudança. O nosso apelo é claro e mobilizador: defender um SNS forte, universal e inclusivo, que proteja em primeiro lugar as pessoas em situação de vulnerabilidade.