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O número de novos casos de cancro continua a aumentar, chegando a 3,7 milhões por ano na Europa. Na origem deste aumento está uma outra tendência igualmente preocupante: a subida dos custos dos novos tratamentos. Já não é pouco habitual ver tratamentos do cancro a custar anualmente entre 50 e 90 mil euros por doente e, ainda mais grave, é o facto de os preços terem atingido novos máximos nos últimos meses com a introdução das terapêuticas CAR-T, a preços entre 300 e 350 mil euros por doente.

Tratamento do cancro: servir os doentes e não os interesses privados

Dada esta situação, os sistemas de saúde vivem uma dificuldade crescente para assegurar o acesso de todos aos melhores tratamentos. Os preços exorbitantes dos medicamentos para o cancro, aprovados actualmente pelos vários países, vão resultar em barreiras ao acesso aos cuidados de saúde. Por outras palavras, com estes preços, os sistemas de saúde não vão ter capacidade para custear todos os doentes, forçando a que alguns sejam excluídos do tratamento. 


Abuso do sistema de patentes


Tais preços exorbitantes só são possíveis devido a um sistema de patentes que assegura às companhias farmacêuticas manter os seus monopólios ao longo de 20 anos, garantindo assim de que não existe concorrência de medicamentos genéricos ou biológicos similares. Nos últimos 60 anos, o sistema de patentes na Europa foi organizado como forma de promover a investigação e o desenvolvimento. No entanto, este sistema desviou-se significativamente do seu objectivo original e está agora sujeito a abusos. 


Na realidade, as maiores companhias farmacêuticas investem muito pouco em investigação. Os novos compostos são actualmente criados por start-ups, sendo depois adquiridos a preços elevados – frequentemente na casa dos milhares de milhões de euros – pelas farmacêuticas. Por exemplo, o Yescarta®, a terapêutica CAR-T da Gilead, não foi desenvolvido por esta companhia mas sim por outra, a KitePharma, tendo sido depois adquirido por 12 mil milhões de dólares (cerca de 10 mil milhões de euros) em 2017. 


Passados 60 anos da sua criação, as patentes farmacêuticas são agora sobretudo activos financeiros e uma fonte de facturação e de lucro. A área da investigação do cancro é hoje não só um sector de potencial crescimento, como um campo de batalha pela saúde. É evidente que os montantes cobrados aos países incluem os custos de todas as transacções financeiras relacionadas com fusões e aquisições.  

 
Quando os cidadãos individuais pagam os seus impostos e contribuições sociais, estão também a ajudar a financiar estes negócios de especulação financeira. Ao aceitarem os custos dos medicamentos baseados no uso indevido das patentes, os países tornam-se cúmplices no abuso dos impostos públicos para benefício privado, à custa da saúde e da vida daqueles que se encontram doentes. 


Recolocar o acesso à saúde no centro do sistema


No entanto, nada disto é inevitável. Quando as disposições sobre as patentes farmacêuticas entraram em vigor, os países adoptaram voluntariamente medidas na forma de licenciamento obrigatório para evitar os monopólios, quando a saúde pública necessitasse dos medicamentos. Esta ferramenta, que foi desde então reconhecida pela lei internacional, funciona como um aviso de que a condição recíproca das patentes de medicamentos é um direito fundamental ao acesso aos serviços de saúde. 


É dever dos governos assegurar que os sistemas de saúde são sustentáveis. Para assinalar este ano o Dia Mundial de Luta contra o Cancro, apelamos aos governos para que garantam a primazia do acesso de todos aos cuidados de saúde, em detrimento dos interesses privados de alguns, e que recorram a todas as ferramentas e meios à sua disposição para tornar real esta situação. O que está em causa não é mais do que a nossa saúde e as nossas vidas. 

Dr. Fernando Vasco
Presidente da delegação portuguesa da Médicos do Mundo