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Dr. António Bento - Diretor do Serviço de Psiquiatria Geral e Transcultural

Sex, 2019-02-15 16:32

Depois de mais de 30 anos de trabalho de rua, continuo a dizer que o principal problema relativamente à temática sem-abrigo, é a falta de reconhecimento público e político das doenças psiquiátricas das pessoas em situação de sem-abrigo, incluindo as doenças psicóticas e as associadas ao álcool e drogas.
Enquanto não houver esse reconhecimento, os milhões de euros gastos na área dos sem-abrigo serão em vão e nunca irão ao fundo do problema.

Claro que são todos, ou quase todos pobres, desempregados, “casos sociais”, sem casa, sem teto e muito mais coisas que se queira chamar-lhes. Mas se todos os casos que são doentes psiquiátricos continuarem muito doentes, nada, nada funcionará sem tratamento psiquiátrico. E digo abertamente “psiquiátrico” e não o eufemismo “saúde mental”, que não sei o que quer dizer (nunca conheci ninguém que não tivesse problemas de saúde mental nalguma altura das suas vidas). 

Um segundo grande problema é a colaboração, entre pessoas e organizações, sem a qual também quase tudo será também em vão. Pode parecer fácil à primeira vista, mas é dificílimo! Todas as pessoas e organizações têm as suas agendas e interesses próprios e específicos, e ainda que possamos estar todos a favor da pessoa em situação de sem-abrigo, as vias para este objetivo são muito diferentes, às vezes antagónicas.

Quer isto dizer que está tudo mal? Não, antes pelo contrário! A nossa equipa coordena um projeto europeu com 8 países e só em Portugal existem Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) em todos os concelhos em que existe este problema e é sempre apontado como um país com intervenções inovadoras e boas práticas na área dos sem-abrigo.

Mas também na Europa é patente a falta de reconhecimento das doenças psiquiátricas das pessoas em situação de sem-abrigo. Pessoalmente sou muito bem tratado, no nosso país e na Europa e tenho liberdade para dizer o que encontrei em mais de 30 anos de trabalho na rua. Mas depois de andar há décadas a dizer estas coisas parece que fica tudo na mesma, e os problemas continuam a ser referidos e tratados  são os da pobreza, sociais, habitacionais…

E as pessoas que vivem nas ruas de Portugal e por essa Europa fora, vistas por milhões de outras pessoas, são os seres humanos mais invisíveis, pois ainda nunca ninguém disse quem realmente são!