Emanuele Siracusa

A Médicos do Mundo (MdM) está atenta aos efeitos da atual crise económica na vida das populações, sobretudo na das mais vulneráveis. A análise da situação, num artigo de Ernesto Carneiro, membro da Direção da MdM.

Ernesto_Carneiro

 

 

 

 

Por Ernesto Carneiro
Membro da Direção da Médicos do Mundo

A grave crise económica e social que o país está a sofrer, tem vindo a atingir de forma impetuosa e brutal os grupos sociais mais vulneráveis. De acordo com o recente relatório da Pordata, em 2021, quase um terço da população portuguesa (uma em cada três pessoas) vivia em risco de pobreza, número que já contemplava os impactos do surto pandémico da COVID-19, mas que ainda não incluía os efeitos da atual crise.

De facto, os impactos resultantes da guerra na Ucrânia, os efeitos do aumento dos juros, a subida dos custos energéticos nas suas diferentes fileiras, seja no gás, gasolina, gasóleo ou eletricidade, têm vindo a gerar surtos inflacionários substantivos que aparentemente ainda não estabilizaram, mantendo grande incerteza. Em recentes declarações, a presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, avisou que o pior pode estar para vir, considerando que a inflação ainda não atingiu o pico e possa ir além dos 10,6%.

No início de novembro, a inflação atingiu valores que nos remetem para o começo dos anos 90 do século passado, ou seja, há cerca de 30 anos. Os valores da inflação média rondam mais de 10% e, se considerarmos os bens alimentícios de primeira necessidade, tais como carne de frango, legumes ou frutas, os valores da inflação sobre estes bens rondam ou ultrapassam cerca de 30%.

Consequentemente, este efeito inflacionário, embora transversal a todas as camadas da população, torna-se fatal para as populações com os rendimentos mais baixos (30% da população).

Uma parte da população está fora das estatísticas

Importa aqui fazer uma ressalva quanto a estes valores. Os indicadores de pobreza, que o Instituto Nacional de Estatística (INE) e o Eurostat publicam anualmente, reportam-se às franjas da população “devidamente identificadas”. No entanto, há uma parte desta que passa ao lado das estatísticas oficiais. São exemplo as pessoas em situação de sem-abrigo, que, por viverem em condições miseráveis, e assim excluídas materialmente, não integram os valores estatísticos oficiais.

Importa referir que os “conceitos” de pobreza assentes em limiares da ordem dos 500 e poucos euros, que definem “tecnicamente um pobre”, não representam ou ilustram o verdadeiro panorama da pobreza. 

A título de exemplo consideremos um casal com dois filhos, que resida nas periferias dos centros urbanos e que aufira quatro vezes o “limiar de pobreza”, ou seja, um valor de cerca de dois mil euros. Apesar de ser “catalogado” de classe média, pressupondo algum desafogo económico, depois de descontarmos uma renda de casa não inferior a 650 euros (ou os custos com a prestação bancária), as despesas de educação dos filhos, alimentação, energia, transportes e medicamentos ou cuidados com saúde (se for o caso), por muita "ginástica" orçamental que se faça, dificilmente aquele rendimento cobrirá todos os encargos.

Chegamos assim à triste, mas crua realidade da chamada pobreza envergonhada. 

Há um número crescente de pedidos de apoio ao Banco Alimentar (que já não consegue dar resposta às múltiplas solicitações) e a organizações de solidariedade, tais como a Cáritas, Misericórdias ou outras. As notícias que nos chegam pela comunicação social dão conta que as grandes superfícies comerciais têm vindo a registar, a cada dia que passa, incrementos em “desvios” de produtos de primeira necessidade, tais como enlatados, massas ou outros, e que crescem pedidos aos restaurantes das sobras. Estas situações refletem, talvez, a ponta do icebergue desta realidade constrangedora, a que todos assistimos, uns com indiferença, outros chocados, outros impotentes perante tamanha devastação social.

Os aumentos das taxas de juro, para quem tem crédito à habitação, é algo que angustia e deprime perante uma incerteza, cuja certeza única é a incerteza quanto ao futuro. Há mesmo casos reportados em que as pessoas têm de decidir mensalmente entre o pagamento da renda e a compra de medicamentos ou de alimentação. É algo devastador, com tendência para agravar-se.

Vejamos os números. De acordo com os dados oficiais mais recentes sobre a pobreza, do Observatório Nacional da Luta contra a Pobreza, referentes a 2021, noticiados pela Agência Lusa em novembro de 2022, a taxa de risco de pobreza ou exclusão social aumentou cerca de 12% face ao ano anterior, para 22,4%.

Ainda segundo os mesmos dados, a pobreza e a privação material e social afetam sobremaneira a população mais idosa, desempregados e famílias monoparentais.

O efeito da inflação

A taxa de variação homóloga do Índice de Preços no Consumidor sofreu um acréscimo de 10,2%, face a setembro (9,28%), superando o valor “histórico” de 1992, segundo dados do INE, conforme notícia da Lusa. Estes aumentos, que se reportam, tal como já referido, à energia, habitação e bens alimentares de primeira necessidade, situaram-se entre 15 e 20% ou mesmo 30%, no período de agosto a outubro passado. Enquanto isso, o aumento de salários, quando verificado, teve como limite superior 4,5%.

Deste modo, é um facto inquestionável que existiu uma redução efetiva do poder de compra, decorrente do aumento do custo dos bens essenciais, em virtude do surto inflacionário, e da reduzida atualização salarial.

Esta situação é tanto mais grave, quanto menor for o poder de compra das populações, dado que o escasso pecúlio que auferem é literalmente “consumido” pelas despesas de alimentação e associadas à habitação. Assiste-se assim a um feroz incremento das assimetrias sociais, perto de uma terceiro-mundialização da nossa sociedade.

O combate à pobreza não pode ser exclusivamente imputado ao Estado, tem de ser encarado como uma guerra de todos, como um propósito, um objetivo nacional, por via dos princípios da solidariedade e da subsidiariedade, nos quais as Organizações Não-Governamentais para o desenvolvimento (ONGD) estão na primeira linha, como sempre.

Reiterando a interrogação do Prof Eugénio Fonseca: “… e se não existissem no terreno ONG, como estaríamos perante esta crise?...” Com efeito as ONG são entidades privadas da sociedade civil, sem fins lucrativos, que buscam e encontram soluções para problemas de elevada complexidade, que têm formas de ligação e aproximação aos mais carentes. As suas iniciativas e práticas caraterizam-se por ser mais personalizadas, mais humanizadas e de proximidade, sem que o Estado reconheça, na quase totalidade das vezes, o seu papel determinante na resolução ou amenização dos gravíssimos problemas que a sociedade atravessa, substituindo-se, frequentemente, ao papel daquele, ou amortecendo muitas das dificuldades e carências a que as populações mais vulneráveis estão expostas.

Com o agravamento da pobreza, decorrente dos efeitos que ainda se fazem sentir da pandemia, agora incrementados e potenciados pelos efeitos da crise económica, deve ser reconhecido o determinante papel das ONG na resolução ou, como se referiu, na amenização dos gravíssimos problemas sociais, seja em fazer chegar produtos alimentares de primeira necessidade, seja no apoio social ou nas diversas componentes da saúde.

Exige-se - torna-se imprescindível - que o Estado seja mais social, tenha políticas mais integradoras, inclusivas, de desenvolvimento económico, descentralizadoras, mobilizadoras, eficientes e eficazes.

Na Médicos do Mundo (MdM), estamos atentos a esta realidade, todos os dias, quando saímos para o terreno, ao encontro das pessoas. Não ficamos quietos perante as dificuldades e, sempre que necessário, adaptamos a nossa intervenção, para melhor responder às necessidades de quem precisa de nós.

Em território nacional, a MdM tem atualmente a decorrer perto de uma vintena de projetos/intervenções, que dão resposta a muitas carências e lacunas, de que são exemplo:

  • Centro de Alojamento Temporário Joaquim Urbano para Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, onde assegura a prestação de cuidados de saúde gratuitos;
  • Centro Fixo de Rastreio, para a deteção precoce da infeção por VIH, Hepatites virais e outras Infeções Sexualmente Transmissíveis (IST);
  • MedPAH - Medicamentos para Ação Humanitária, que presta apoio medicamentoso gratuito a pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconómica; e
  • Orientar, que promove o acesso a cuidados de saúde das pessoas em situação de vulnerabilidade social.

O nosso compromisso mantém-se com as populações mais vulneráveis. 

 

Referências:

Pordata - Dados sobre famílias em Portugal
Consulta de imprensa ou de agências noticiosas (Público, Expresso, Comércio do Porto, Agência Lusa)
INE- Dados diversos